Maria José:
Esta carta surge como uma obrigação que sinto para consigo.
Creio que poderá ajudá-la a esclarecer dúvidas e sentimentos , ou mesmo contribuir em algo para a sua felicidade.
Um segredo que trago bem guardado.
Sinto-me irremediavelmente ligado, à história de amor que lhe quero contar. É como se estivesse a falar um pouco de mim, pela cumplicidade e amizade que me une a quem ma confiou.
Não pretendo identificar-me. Nada adiantaria. Apenas lhe quero contar o que Outro não lhe ousou dizer.
Para satisfazer parte da sua legítima curiosidade, apenas lhe confidencio que somos vizinhos. Não de rua mas de bairro.
Vivi longos anos a passar diariamente pela sua rua. Habituei-me a vê-la por de trás da pequena vidraça de uma varanda suspensa por dois querubins, no primeiro andar de uma casa amarela.
Confesso que algo sempre me intrigou em si.
O gesto tímido com que afastava a cortina acinzentada e carcomida pelo tempo.
A persistência da sua pose à janela todos os dias e na hora certa.
O seu olhar brilhante a soltar lágrimas de melancolia imbuídas em ténues sonhos inatingíveis.
A aridez da varanda em seu redor, como se ali se encontrasse perdida.
Tudo isso ….me fazia interrogar…sobre o porquê da sua atitude.
O peito apertava-me sempre que a via a espreitar por detrás da vidraça.
Sentiria o quê?
Tristeza?
Desespero?
Solidão?
Tudo isso. Certamente!
Para meu contentamento, tentava vislumbrar alguma pequena réstia de esperança, por detrás daquela espécie de nuvem que se projectava no seu rosto e se reflectia na vidraça.
Passaram-se anos.
Um dia, inesperadamente, sussurram-me –o António, o serralheiro, não vive feliz.
- O quê?
- Sim! É isso mesmo . Não posso falar alto. Não vão as paredes ter ouvidos!
O secretismo impresso naquelas palavras tão fugidias, afligiram-me.
- Casado há anos nunca esqueceu a Maria José. A loira … nunca o fez estremecer de amor. Apropriou-se dele, tiveram um filho e o pobre António ali ficou figurante ocasional de um filme que vem perdurando…
António sofre. Nunca perdoou a si próprio o miserável preconceito que o arrasou.
Para ele, Maria José continua a ser aquela menina por quem um dia se apaixonou!
Sei que a Maria José , desde a adolescência se sente marginalizada numa sociedade assente em estereótipos de beleza física. Uma sociedade em que a grandeza interior pouco ou nada conta.
A sua lucidez sempre comoveu António. Sempre o perturbou.
Sei que o olhava com carinho, com amor mas sempre de soslaio. Não se achava digna de um sentimento recíproco. Presumo o que isso lhe doía mas nunca foi capaz de lho dizer.
Sabiam ambos que nunca poderiam ser um do outro.
Calculo que, talvez por isso, António arranjasse pretextos , como o da briga do cão com o gato frente à sua janela, para poder parar, olhá-la de frente e sorrir para si, sem que mais ninguém se apercebesse.
Um sorriso recíproco. Para ambos inesquecível . E acredite em mim, não foi uma acção ocasional. Se não fosse verdade como poderia eu saber desse momento ímpar das vossas vidas e estar aqui a reproduzi-lo?
Ele nutria uma grande admiração e paixão por si – digo-o com toda a certeza e convicção.
Imagino que a Maria José , conforme cresceu , se foi cada vez mais escondendo. Foi assim, não foi?
Passou a viver só e dentro de casa. A única alegria que tinha era espreitar da varanda, António, o serralheiro . Não é verdade?
Mais tarde, começaram a falar de si como sendo a Maria José bruxa e corcunda.
Desde que soube desse grande amor , apercebi-me de muita coisa.
Ele encantara-se por si quando, ainda criança, a ouvira declamar um pequeno poema na festa de final do ano da escola primária, situada na praceta principal do bairro, que ambos frequentavam. Também sei que, ainda hoje, o António sabe de cor as doces palavras que saíam do seu bonito timbre de voz e recorda-as com muita emoção.
Uma vez, assisti a uma discussão entre o António e uma senhora .
Insistia com ela e afirmava a pés juntos que essa história de ser a Maria José Corcunda não passava de um alcunha de família. Uma invenção! E irritado gritava – mas como podem saber se ela nunca sai de casa. Isso era outra! Talvez fosse uma tia velha ! – concluía de forma acintosa.
Bom, Maria José, muito mais lhe poderia contar mas não quero alongar mais esta carta.
Peço-lhe que acredite neste meu testemunho de verdade e sinceridade.
Claro que lhe é reservado o direito da dúvida ou até o do descrédito total.
Situação a que me sujeito de forma claramente consciente. Obviamente… e sem qualquer ressentimento.
Mas uma coisa lhe suplico – não deixe de espreitar o seu serralheiro à janela.
Ele sobreviverá ao desgosto enquanto puder vislumbrar o seu rosto por detrás da vidraça
da varanda suspensa pelos dois querubins.
Não conheço nenhuma outra razão para amar senão amar!
Um amigo
F. Ponte
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