segunda-feira, 6 de junho de 2011

Texto de Filomena, carta ao único heterónimo feminino conhecido de Fernando Pessoa


 Maria José:

Esta carta surge como uma obrigação que sinto para consigo.
 Creio que poderá ajudá-la   a esclarecer  dúvidas e sentimentos , ou mesmo   contribuir em algo para a sua felicidade. 
 Um  segredo que trago bem guardado.
Sinto-me irremediavelmente   ligado, à história de amor que lhe quero contar. É como se estivesse a falar um pouco de mim, pela cumplicidade e amizade que me une a quem ma confiou. 
 Não pretendo identificar-me. Nada adiantaria.  Apenas lhe quero contar o que Outro não lhe ousou dizer.
Para satisfazer parte da sua legítima curiosidade, apenas lhe confidencio  que somos vizinhos. Não de rua mas de bairro.
Vivi longos anos a passar diariamente pela sua rua. Habituei-me  a vê-la por de trás da pequena vidraça de uma varanda suspensa por dois querubins, no primeiro andar de uma casa amarela.
Confesso que  algo sempre me intrigou em si. 
O gesto tímido com que afastava  a cortina acinzentada e carcomida pelo tempo.
A persistência da sua pose à janela todos os dias e na hora certa.
O seu olhar brilhante a soltar lágrimas de melancolia imbuídas em ténues sonhos inatingíveis.
A aridez da varanda em seu redor, como se ali se encontrasse perdida.
Tudo isso ….me fazia interrogar…sobre o porquê da sua atitude.

O peito apertava-me sempre que a via a espreitar por detrás da vidraça.
Sentiria o quê?
 Tristeza?
Desespero? 
Solidão?
Tudo isso. Certamente! 
Para meu contentamento,  tentava  vislumbrar  alguma pequena réstia de esperança,  por detrás daquela espécie de nuvem   que se projectava no seu rosto e  se reflectia  na vidraça.
Passaram-se anos.
Um dia, inesperadamente,   sussurram-me –o  António, o serralheiro,  não vive feliz.
- O quê?
-  Sim!  É isso mesmo . Não posso falar alto.  Não vão  as paredes  ter ouvidos!  
O secretismo impresso  naquelas palavras tão fugidias, afligiram-me.
- Casado há anos nunca  esqueceu a Maria José. A loira … nunca o fez estremecer de amor. Apropriou-se dele, tiveram um filho e o pobre António ali ficou figurante  ocasional de um filme que vem perdurando…
António sofre. Nunca perdoou  a  si próprio o miserável preconceito que o arrasou.
Para ele,  Maria José  continua a ser aquela menina  por quem um dia se apaixonou!
Sei que a Maria José , desde a adolescência  se sente marginalizada numa sociedade assente em estereótipos de beleza física. Uma  sociedade em que a grandeza interior pouco ou nada conta.
A  sua lucidez  sempre comoveu António. Sempre o perturbou.
Sei que o olhava com carinho, com amor mas sempre  de soslaio. Não se achava digna de um sentimento recíproco. Presumo o que isso lhe doía mas nunca foi capaz de lho dizer.
Sabiam ambos que nunca poderiam ser um do outro.
Calculo que, talvez por isso, António arranjasse pretextos , como o da briga do cão com o gato frente à sua janela, para poder parar,  olhá-la de frente e sorrir para si,  sem que mais ninguém se apercebesse.
Um sorriso recíproco.  Para ambos inesquecível .  E acredite em mim, não foi uma acção ocasional.  Se não fosse verdade como poderia eu saber  desse momento ímpar das vossas  vidas e estar aqui a reproduzi-lo?
Ele nutria uma grande admiração e paixão por si – digo-o com toda a certeza e convicção.
Imagino que  a Maria José , conforme cresceu , se foi  cada vez mais escondendo. Foi assim, não foi?
Passou a viver só e dentro de casa. A única alegria que tinha era espreitar da varanda, António, o serralheiro . Não é verdade?
Mais tarde, começaram a falar de si como sendo a Maria José bruxa e corcunda.
Desde que soube desse grande amor , apercebi-me de muita coisa.

Ele encantara-se por si  quando,  ainda  criança,  a ouvira declamar um pequeno poema na festa de final do ano da escola primária, situada na praceta principal do bairro, que ambos frequentavam. Também sei que,  ainda hoje, o  António  sabe de cor  as doces palavras que saíam do seu  bonito  timbre de voz  e recorda-as com muita emoção.
Uma vez, assisti a uma discussão entre o António  e uma  senhora .
 Insistia com ela e afirmava a pés juntos que essa história de ser  a Maria José Corcunda  não passava de um alcunha de família. Uma invenção! E  irritado gritava – mas como podem  saber se ela nunca sai de casa.  Isso era outra! Talvez fosse uma tia velha ! – concluía de forma acintosa.
 Bom, Maria José,  muito mais lhe poderia contar mas não quero alongar mais esta carta.
Peço-lhe que acredite neste meu testemunho de verdade e sinceridade.
Claro que lhe é reservado o direito da dúvida ou até o  do descrédito total.
Situação a que me sujeito de forma claramente consciente. Obviamente… e sem qualquer ressentimento.
Mas uma coisa lhe suplico – não deixe de espreitar  o seu serralheiro à janela.
Ele sobreviverá ao desgosto enquanto puder vislumbrar o seu rosto por detrás da vidraça
da varanda suspensa pelos dois querubins.
Não conheço nenhuma outra razão para amar senão amar!

Um amigo


F. Ponte

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