quinta-feira, 9 de junho de 2011

os sapatos de cabedal

Dois sapatos de cabedal estavam deitados junto à estrada. Um de pé, outro de lado.
"Que miséria", pensou a senhora de sessenta anos, passando de cabelo branco bem penteado, anel de brasão no dedo mindinho, solitários discretos nos lóbulos das orelhas.
"Que horror, será que alguém morreu aqui?", pensou a rapariga apressada, laptop ao ombro, tailleur da Zara do verão passado.
"Que diabo, se não houvesse tanta gente, entravam-me já nos calcantes", disse o homem de mais de quarenta, a garrafa na mão, os passos tropeçando no passeio.
"Este país está uma desgraça", desdenhou o executivo de pernas musculadas, iPOD 63GB.
Dois sapatos de cabedal estavam deitados junto à estrada. Um de pé, outro de lado.
Debaixo dos jacarandás, mesmo ali ao lado, um casal de adolescentes. Ele, descalço, apatetado pela paixão. Ela, louca de tanto a rir com a vitória.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

    "SEXTO SENTIDO"

Se eu fosse um mouro,
Em seu castelo erguido
Na Serra que da Lua
Tem o nome e o sentir,
Gritando, lá do alto,
Sortilégios esotéricos
Ao povo Luso que a Serra invade,
Com sede de terra e de poder,
Para esse espaço a sangue,
Ferro e fogo conquistar...

Se eu fosse um nigromante,
Feiticeiro da Serra da Lua,
Qual mago que um tambor
Rufando enche de glória,
Senhor de Áfricas
Sem fim ou sem princípio,
Soberano dos vivos
E dos mortos evocados,
Dono da negra magia do Passado,
Podendo, com meus dons,
Fazer parar as leis da guerra,
Que os continentes
De todo enfeitiçaram...

Se eu fosse o vento
Que mais forte sopra,
No altivo castelo da mourama,
Na noite tempestiva de invernos
Perdidos entre lareiras
Que as memórias não consomem,
Por mais alto
Que arda a chama,
Por mais calor
Que a lenha produza...
Imperador de tufões,
De vendavais,
Rei do sopro
Que não se esgota nunca,
Por muito que me venha zumbir
Dentro da alma,
Sussurrando-me aos ouvidos
Desesperos de infinito,
Que parecem competir
Com a velha eternidade...

Se eu fosse a dança,
Que dança e não balança,
Em sete véus mágicos de moura,
Em movimentos de ondulante ritmo,
Marcado em cada passo,
Em que a forma acompanha o som,
Como se a perfeição
Estética da vida
Pudesse traduzir a festa
Da evidente humanidade
Ou a música da alegria da vitória,
Um grito mudo de gozo e de prazer,
Que ao Homem faz viver
E reviver no espaço e tempo,
Qual passo de baile
A celebrar eventos mil
Mais do que outros já havidos...

Se eu fosse a bela Primavera,
Terna de ambientes,
Florida nos caminhos,
Altiva no serrado,
Nesse Castelo dos Mouros
Amada a cada volta,
A cada curva,
Destemida e sem receio
De um dia perder a liberdade...
Enfim, uma estação solidária,
Realizada de viva esperança,
Cega de perfumes e odores
Em cada berro de vida
Que me cerca e me transborda...

Se eu fosse, por fim,
A Fortaleza Árabe,
Em Sintra altiva e imponente,
Ou simples mato,
Uma terra de medos,
Mistérios e surpresas,
Fonte de vida,
Abrigo de animais,
Floresta tropical,
Savana, bosque,
Ou ainda até,
E porque não,
Selva africana
Ou charneca em flor...

Se eu fosse tudo isto
E muito mais,
Diria,
Como direi agora,
A mesma coisa simples
E pequena:
"- Guarda só pra ti
Os meus segredos,
Meu amor,
E vive para que eu possa viver,
Pleno de ti,
Que sem ti nada é poder!...

Espera-me nesta vida
E na outra se a houver,
Com os teus braços abertos
Por carinhos,
Enfeitada de sedas e perfumes,
Cetins, veludos
E linhos de encantar
Ou nua apenas,
Qual odalisca que sem esforço
Conquista o temível sultão...
Mas mais que tudo
Ama o vagabundo dos limbos,
Ama Haragano, O Etéreo,
Este eu, cujo discurso
Se perde nas palavras,
Mas que este coração a ti doou,
Porque tu és
O meu sexto sentido!"

Haragano, O Etéreo in Achas para um Vagabundo

terça-feira, 7 de junho de 2011

A Lebre e o Cágado

A Lebre Esperteza desafia Cágado para a corrida aos rendimentos, apostando no mercado de valores mobiliários.
Cágado conservador aceita a corrida, mas aposta nos certificados de aforro.
O árbitro Cavaco emite aviso de sobrevalorização do mercado de acções, fazendo cair os valores investidos.
O investimento e respectivos rendimentos de Lebre Esperteza ficam a zero, zero, nada.
E como Lebre não sabe nadar, afoga-se.
Cágado esse, ainda vive dos rendimentos.

escre-ver

Escrevo como vejo. Não consigo escrever se não vejo. Mas mesmo o que não se consegue ver, eu vejo. Por isso escrevo. E descrevo. Talvez isso explique porque sou como sou.

Poema por Jaqueline Amaro

POEMA DE AMOR - JORGE DE SOUSA BRAGA

Esta noite sonhei oferecer-te o anel de Saturno
e quase ia morrendo com o receio de que ele não
te coubesse no dedo!

segunda-feira, 6 de junho de 2011

A Lebre a Vagarosa por Manuela



No mato, todos lhe conheciam esta faceta irritante. Passava os dias a desafiar os animais com os maiores disparates, só pelo prazer de os irritar. E os intentos da lebre eram sobejamente alcançados. Todos corriam dela a sete patas; evitavam-na como podiam. Bem; todos, todos, não. A Vagarosa não lhe dava importância, e respondia-lhe sempre em tom cordial, fazendo de conta não perceber as intenções zombeteiras. Mesmo no momento da lebre a desafiá-la para a corrida ao longo do trilho dos patos, caminho feito por entre árvores frondosas, e terminando ao pé do lago. Bem dito, bem feito. Foi a Matreira, raposa de nascença, nomeada árbitro do desafio. Competia-lhe garantir a partida de ambas exactamente ao mesmo tempo, e registar a primeira chegada.
No dia e hora marcados, além das concorrentes e da Matreira, todo o mato comparecera em peso para assistir à derrota certa da Vagarosa. Como podia ser tão tonta?
A lebre viera com o melhor fato de treino e os ténis mais leves. Não convinha desapontar os fãs, no caso de os haver. A Vagarosa também comparecera antes do tempo, pois saíra de casa com três horas de antecedência.
Ficaram na linha de partida à espera do sinal. A Matreira apitara com toda a força; o momento era solene e ficara devidamente registado nos tímpanos dos espectadores. A lebre desatara a correr com velocidade desnecessária, deixando a Vagarosa a mastigar poeira. Ao fim dos primeiros cem metros, a lebre olhara para trás, mas nem sinal da lenta companheira. Então, permitira-se rir com gosto, antecipando a gabarolice da proeza.
Com tal avanço, resolvera então descansar à sombra do pinheiro; este assinalava a terça parte do total a percorrer. Até podia dormir a sesta, pensara. Teria à vontade hora e meia pela frente sem sobressaltos. E se o pensara, melhor o fizera. Dormira sossegada, e sossegada estivera no momento da Vagarosa passar pelo pinheiro; nem dera por nada.
Acordara sobressaltada sem saber bem onde estava. Mal se lembrara, correra como jamais correra na vida, em direcção à linha de chegada. A Matreira já lá estava, e, maldição!, a Vagarosa também. E com a medalha ao peito.

                                   
                                                                                                                        Manoela Almeida

Telegrama de Isabel

menina Maria José – primeiro andar do prédio amarelo
inexplicáveis STOP
em que não há palavras que apresentem ou representem STOP 
aquilo que sinto STOP
por favor não me ache ridículo STOP
há momentos assim STOP
respeitosamente, sr. António, o serralheiro.
mas simplesmente, amo-a STOP
quando entrevejo a sua presença à janela STOP

Maria José olhava para o serralheiro por Alberto




Versão P.António Vieira
      Arranca o serralheiro um pedaço de bronze e com ele faz uma corneta para chamar a Maria Jose´, ou faz um santo que se pode por no altar.

Versão Camiliana
      Chegado à rua dos fanqueiros, o lunático provinciano, serralheiro, agenciou os seus afazeres e, sem consultar a família, disse para a Maria José, arquejando e com serenidade imbuída de cortesia:
            -Por entre os meus sonhos, escolhi-te, mulher,

Versão Queiroziana
      Passando `a porta da Maria José  o serralheiro dizia para o amigo: “Alencar, dizias tu que Portugal tem grande riqueza suína?

Versão Camoneana
      Serena, no peitoril da janela
          Estava a Maria José em sossego
       Eis que passa em baixo um serralheiro
         Vestido a primor como um cavalheiro

Tentando uma versão Fernando Pessoa
      Maria José olhou para o serralheiro fingidor
          Que serralhava tão completamente
          Que serralhava deveras e sem dor de dentes
          Deixando às vezes, em desassossego, os clientes. 

Alberto Quadros
        

Ruy Belo

Como quem escreve com sentimentos
Estou sujeito ao tempo sou este momento
perguntam-me quem fui e permaneço mudo
o tempo poisa-me nos ombros em relento
partiu no vento essa mulher e perdi tudo

Já não virá ninguém por muito que vier
em vão esperei a rosa da minha roseira
quando um pássaro sai dos olhos da mulher
é porque ela é de longe e não da nossa beira

Resta-me um sonho desconexo e desconforme
Na haste da camélia que o vento quebrou
jamais a vida branca como ela dorme
Eu era essa camélia e nunca mais o sou

A minha vida é hoje um sítio de silêncio
a própria dor se estreme é dor emudecida
que não me traga cá notícias nenhum núncio
porque o silêncio é o sinónimo da vida

O mundo para além dessa mulher sobrava
tudo vida vulgar tumultuária e cega
o brilho do olhar equilibrava a chuva 
nas suas costas hoje toda a luz se apaga

Mulher que um golpe de ar me pôde arrebatar.
enfim não existia ou só ela existia
Asas que ela tivesse deixou-as queimar 
e tê-la-á levado estranha ventania 

Daqueles traços fisionómicos de pedra 
não quero já ouvir a voz que às vezes vem
na calma destacada por um cão que ladra
Não há ninguém perto de mim sinto-me bem

Cada casa que roço é escura como um poço
se sou alguma coisa sou-o sem saber
sossego solitário sem mistério isso
talvez tivesse sido o que sempre quis ser

As flores vinham nela e era primavera
mas tanto a nomeei e tanto repeti
erros numa estratégia imprópria para ela
tamanho amor expus que cedo a consumi

A noite quando ao fim descer decerto há-de
ser certa solução. Foi há muito a infância
Ao tempo o que tu tens tu bem o sabes cede
estendo as mãos talvez te fique a inocência

A vida é uma coisa a que me habituei
adeus susto e absurdo e sobressalto e espanto
A infância é uma insignificância eu sei
e apenas por a ter perdido a amamos tanto

Estou sozinho e então converso com a noite
das palavras que nos subjugam nos submetem
As coisas passam e em vez delas é aceite
o nosso sistema de signos onde as metem

Esta minha existência assim crepuscular
devida àquela que é rastos destroços restos
acusa hoje alguma intriga consular
de quem não tem cabeça a comandar os gestos

Foi uma rosa rubra a autora desta obra
aberta e arrogante grácil flor do instante
que triunfante não há coisa que não abra
para ferir quem a viu e morrer de repente

E noite sou e sonho e dor e desespero
mero ser sórdido e ardido e encardido
mas já não tarda a abrir-se na manhã que espero
um arco com vitrais aos vendavais vedado

E embora a minha fome tenha o nome dela
e da água bebida na face passada
não peço nada à vida que a vida era ela
e que sei eu da vida sei menos que nada



Ruy Belo
Despeço-me da Terra da Alegria
Todos os Poemas
Assírio & Alvim
2000

A Correspondência de Maria José por Edison

Era uma tarde serena de Junho em Lisboa. Esta cidade, assim como qualquer outra, possui
peculiaridades em cada uma das suas ruas, peculiaridades que possibilitam aos seus intervenientes
vivenciar um momento único em suas vidas e que, muito provavelmente, não poderiam vivenciar se,
no mesmo momento, estivessem na rua do lado.
Maria José teve a sua peculiaridade quando optou por ficar em casa em vez de ir às
compras com a mãe e a irmã. Nessa tarde, como uma outra qualquer, Maria José encontrava-se à
janela, desfrutando de uma agradável brisa que se fazia sentir. Enquanto a brisa afagava-lhe a sua
face e secava-lhe lentamente as pequenas lágrimas que lhe rolavam pela cara, Maria avistou António.
Esta visão, particularmente inesperada numa tarde de Sábado, roubou de imediato um suspiro de
Maria.
À semelhança de uma leoa perseguindo a sua presa, Maria mal pestanejava, seguia António
com o seu olhar sem o perder de vista por um segundo sequer. Só amaldiçoou o Senhor Zé dos
Balões, pois este, com a enorme quantidade de balões que transportava, fez com que Maria
perdesse António por breves instantes quando este passava mesmo em frente ao prédio desta.
António seguia o seu trajecto habitual, surgiu na esquina do barbeiro, desceu a rua, e
desapareceu no lado oposto. Instantes depois deste desaparecer da rua de Maria, tocaram à
campainha. Maria, estando sozinha em casa, desceu do seu estrado e deslocou-se à porta.
- Quem é? – Perguntou.
- Dona Antonieta! - Proferiram do outro lado da porta. - A sua vizinha de baixo. –
Acrescentaram.
Era escusado esta segunda parte pensou Maria. Ela sabia perfeitamente quem era a Dona
Antonieta, era a sua chata vizinha de baixo. Maria, devido ao seu reumatismo que a cada dia que
passava, deixava de se cingir às pernas, abriu a porta o mais rapidamente que pode, mesmo que isso
significa-se um esforço suplementar.
- Encontrei agora mesmo esta carta para si à porta do prédio. – Disse a Dona Antonieta.
- Obrigada! – Disse Maria com um misto de surpresa e indignação ao mesmo tempo que
Dona Antonieta afastava-se.
Depois de fechar a porta, Maria deslocou-se para o seu mundo, a janela, onde subiu para o
seu pequeno trono que era o seu estrado. Após subir, pôs-se a contemplar a carta. Esta não era uma
carta normal, não possuía endereço do destinatário nem do remetente, lia-se apenas as seguintes
palavras rabiscadas: 

“Maria José
A rapariga da janela branca”

Maria abriu a carta com movimentos lentos e graciosos, embora parecesse que eram
propositados por ser a sua primeira carta, a verdade é que o reumatismo apenas lhe permitia este
tipo de movimentos. A carta não era muito longa, assim que Maria começou a lê-la, esbugalhou os
olhos, pôs-lhe de parte e virou-se para a sua caixa de coisas que guardava, o seu cofre de coisas
boas por assim dizer. Remexeu e verificou que a carta que outrora tinha escrito para o serralheiro
tinha desaparecido.
Agora, de respiração ofegante, pegou novamente na carta e continuou a sua leitura.
 
Lisboa, 4 de Junho de 2011

Maria José,

Sei que é, no mínimo, estranho o facto me encontrar a escrever
esta carta. Mas a verdade é que, alguém que conhecemos em comum
encontrou a carta que a mim tinha sido destinada, embora esta nunca
fosse designada a chegar às minhas mãos. Mas a verdade é que chegou, e
venho por este meio responder-lhe.
Sobre a minha amiga que tanto fala, ela não mais é do que uma
grande amiga de infância com o qual nunca perdi contacto, é a ela a quem
recorro para desabafar e tudo mais. Ela é um ombro amigo e um porto
seguro, infelizmente, nunca obtive dela qualquer outra coisa nela senão
isso, amizade.
Quanto ao incidente do gato e do cão de que me falou, lembro-me
perfeitamente desse dia, e digo mais, o sorriso que se sucedeu a seguir
entre nós não foi por acaso, sempre me senti intrigado pela menina da
janela, infelizmente, nunca surgiu oportunidade para lhe dirigir a palavra.
Eu sou mesmo assim, inseguro, e nunca tive muita coragem para
dirigir-me seja para quem for, seja para fazer amizade, pedir informação,
ou para outra coisa qualquer. Creio que é como disse, “a gente é como é
e não como tinha vontade de ser”.
Em parte foi isso que me impediu de tentar falar consigo, e agora
é um pouco tarde. Tarde porque, no Domingo passado, quando me viu
com o fato azul, estava eu a ir para um almoço com o Senhor Quirino,
ele é um antigo serralheiro com um negócio bem conceituado e procura
gente nova para o ramo. Sendo eu apenas um aprendiz de serralheiro de
vinte e um anos, acabei por conseguir o trabalho devido à minha dedicação.
E é por essa razão que digo que é tarde para lhe decidir falar, terei
de me mudar para o norte do país, Braga, eventualmente Espanha até.
Digo ainda que não me importava de lhe conhecer apesar da
descrição pouco alegre que faz de si própria, pois, em tempos, tive um
tio que era excelente pessoa mas infelizmente sofreu uma trombose
quando ainda jovem, o que é raro. Apesar da maioria da família passar a
considera-lo um fardo, e não quererem passar tempo com ele, eu não me
importava de passar horas com ele a conversar e a alegra-lo. Ele não se
cansava de ler e cada conversa que tinha com ele era uma aventura. Por
isso, como pode ver, avalio as pessoas pelo que realmente são e não pelo
que aparentam.
Abaixo, indico o meu endereço caso pretenda escrever. Responder-
lhe-ia com muito agrado.

--
António Querubim

António Querubim
Avenida 31 de Janeiro, 310, 3ºEsq
4710-250, Braga
Portugal

P.S.- Envio uma foto para que nunca se esqueça.










 
Calmamente, Maria José olhou para a fotografia, colocou-o de volta na carta, fechou-a, e
meteu-a na sua caixa de coisas boas.
O tempo passou, primeiro, dias, depois semanas, meses e mesmo anos. António, nunca
recebeu a resposta de Maria José.

Texto de Filomena, carta ao único heterónimo feminino conhecido de Fernando Pessoa


 Maria José:

Esta carta surge como uma obrigação que sinto para consigo.
 Creio que poderá ajudá-la   a esclarecer  dúvidas e sentimentos , ou mesmo   contribuir em algo para a sua felicidade. 
 Um  segredo que trago bem guardado.
Sinto-me irremediavelmente   ligado, à história de amor que lhe quero contar. É como se estivesse a falar um pouco de mim, pela cumplicidade e amizade que me une a quem ma confiou. 
 Não pretendo identificar-me. Nada adiantaria.  Apenas lhe quero contar o que Outro não lhe ousou dizer.
Para satisfazer parte da sua legítima curiosidade, apenas lhe confidencio  que somos vizinhos. Não de rua mas de bairro.
Vivi longos anos a passar diariamente pela sua rua. Habituei-me  a vê-la por de trás da pequena vidraça de uma varanda suspensa por dois querubins, no primeiro andar de uma casa amarela.
Confesso que  algo sempre me intrigou em si. 
O gesto tímido com que afastava  a cortina acinzentada e carcomida pelo tempo.
A persistência da sua pose à janela todos os dias e na hora certa.
O seu olhar brilhante a soltar lágrimas de melancolia imbuídas em ténues sonhos inatingíveis.
A aridez da varanda em seu redor, como se ali se encontrasse perdida.
Tudo isso ….me fazia interrogar…sobre o porquê da sua atitude.

O peito apertava-me sempre que a via a espreitar por detrás da vidraça.
Sentiria o quê?
 Tristeza?
Desespero? 
Solidão?
Tudo isso. Certamente! 
Para meu contentamento,  tentava  vislumbrar  alguma pequena réstia de esperança,  por detrás daquela espécie de nuvem   que se projectava no seu rosto e  se reflectia  na vidraça.
Passaram-se anos.
Um dia, inesperadamente,   sussurram-me –o  António, o serralheiro,  não vive feliz.
- O quê?
-  Sim!  É isso mesmo . Não posso falar alto.  Não vão  as paredes  ter ouvidos!  
O secretismo impresso  naquelas palavras tão fugidias, afligiram-me.
- Casado há anos nunca  esqueceu a Maria José. A loira … nunca o fez estremecer de amor. Apropriou-se dele, tiveram um filho e o pobre António ali ficou figurante  ocasional de um filme que vem perdurando…
António sofre. Nunca perdoou  a  si próprio o miserável preconceito que o arrasou.
Para ele,  Maria José  continua a ser aquela menina  por quem um dia se apaixonou!
Sei que a Maria José , desde a adolescência  se sente marginalizada numa sociedade assente em estereótipos de beleza física. Uma  sociedade em que a grandeza interior pouco ou nada conta.
A  sua lucidez  sempre comoveu António. Sempre o perturbou.
Sei que o olhava com carinho, com amor mas sempre  de soslaio. Não se achava digna de um sentimento recíproco. Presumo o que isso lhe doía mas nunca foi capaz de lho dizer.
Sabiam ambos que nunca poderiam ser um do outro.
Calculo que, talvez por isso, António arranjasse pretextos , como o da briga do cão com o gato frente à sua janela, para poder parar,  olhá-la de frente e sorrir para si,  sem que mais ninguém se apercebesse.
Um sorriso recíproco.  Para ambos inesquecível .  E acredite em mim, não foi uma acção ocasional.  Se não fosse verdade como poderia eu saber  desse momento ímpar das vossas  vidas e estar aqui a reproduzi-lo?
Ele nutria uma grande admiração e paixão por si – digo-o com toda a certeza e convicção.
Imagino que  a Maria José , conforme cresceu , se foi  cada vez mais escondendo. Foi assim, não foi?
Passou a viver só e dentro de casa. A única alegria que tinha era espreitar da varanda, António, o serralheiro . Não é verdade?
Mais tarde, começaram a falar de si como sendo a Maria José bruxa e corcunda.
Desde que soube desse grande amor , apercebi-me de muita coisa.

Ele encantara-se por si  quando,  ainda  criança,  a ouvira declamar um pequeno poema na festa de final do ano da escola primária, situada na praceta principal do bairro, que ambos frequentavam. Também sei que,  ainda hoje, o  António  sabe de cor  as doces palavras que saíam do seu  bonito  timbre de voz  e recorda-as com muita emoção.
Uma vez, assisti a uma discussão entre o António  e uma  senhora .
 Insistia com ela e afirmava a pés juntos que essa história de ser  a Maria José Corcunda  não passava de um alcunha de família. Uma invenção! E  irritado gritava – mas como podem  saber se ela nunca sai de casa.  Isso era outra! Talvez fosse uma tia velha ! – concluía de forma acintosa.
 Bom, Maria José,  muito mais lhe poderia contar mas não quero alongar mais esta carta.
Peço-lhe que acredite neste meu testemunho de verdade e sinceridade.
Claro que lhe é reservado o direito da dúvida ou até o  do descrédito total.
Situação a que me sujeito de forma claramente consciente. Obviamente… e sem qualquer ressentimento.
Mas uma coisa lhe suplico – não deixe de espreitar  o seu serralheiro à janela.
Ele sobreviverá ao desgosto enquanto puder vislumbrar o seu rosto por detrás da vidraça
da varanda suspensa pelos dois querubins.
Não conheço nenhuma outra razão para amar senão amar!

Um amigo


F. Ponte

Texto do Gonçalo (lebre e o cágado, tudo sem a letra U

    A Lebre era o animal mais rápido da floresta, e não deixava os habitantes da floresta olvidarem-se disso. Todos os dias se gabava de ser o animal mais rápido de sempre, invencível em toda a corrida.
    “Pois sim, não há animal mais rápido nesta floresta! Há animal que discorde?”
    O Cágado, farto deste gabarolas, interveio.
    “Vejo-te falar bastante, Lebre, mas são só palavras! Jamais vi algo vindo de ti para provar tal coisa!”
    “Pois então diz-me como e provar-te-ei!”
    “Pois então, corramos para ver o mais rápido de nós os dois!”
    “Correr? Contra ti, Cágado?”
    “Não me digas que estás com medo de ser derrotado por mim?”
    “Ah! Não me faças rir!”, disse a Lebre, desdenhosa. “Rápido te vencerei! E como prova de clemência para o próximo derrotado, deixo-te escolher as regras da corrida!”
    “Como desejares! Vês o pinheiro alto, na margem oposta do rio, mesmo à nossa frente?”
    “Sim, perfeitamente!”
    “Essa é a meta. O primeiro a lá chegar vence a corrida e ganha a distinção do mais rápido da floresta!”
    “Hmm, para atravessar o rio tenho de andar três milhas até à àrvore caída...”
    “Estás a voltar atrás no desafio?”
    “Não, jamais! Sigo em frente! E assim provarei ser realmente a mais rapida!”
    E, como o relampago, a Lebre parte em direcção à àrvore caída.
    Ao vê-la partir, o Cágado ri por dentro.
    “Pobre tola. Jamais disse só poderes fazer o caminho por terra...”, reflectia o Cágado ao preparar-se para atravessar o rio a nado.

Curso de escribas Casa Fernando Pessoa

Durante 4 sessões mais de 60 pessoas falaram sobre livros e leituras, fizeram exercícios, riram-se e interrogaram-se. Este blogue é deles e para eles, porque os textos podem e devem ser partilhados. Sejam bem vindos

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